Jacques Lacan – 120 anos

Taciana Mafra Vasconcellos

Poucas vezes a humanidade assistiu à construção de ideias geniais, como as que nasceram da mente do francês Jacques Lacan. De maneira geral, tais homens são cercados por alguns outros que difundirão seu pensamento; contudo, este pensamento novo que subverte os elementos da ordem vigente não se difunde sem tensões, oposições e equívocos.

Além do mais, não é sem problemas que a exegese de um pensador como Lacan se estabelece, já que não é simples a tarefa de acompanhar uma “sacada” que não se dá a pegar facilmente, que se movimenta a partir da clareza de que seu objeto não condiz com soluções imediatas, que é necessária uma permanente investigação das questões. Seguir Lacan é estar às voltas com novos conceitos e com múltiplos prismas para cada um deles quanto mais se avance no tempo. Por esta razão, o estilo de seu pensamento e a natureza de suas proposições suscitaram a impressão de um pensamento hermético e inacessível.

De fato, foram necessárias algumas décadas desde o início de seu ensino para que os discípulos pudessem situar-se minimamente na transmissão de suas ideias. As nervuras para que se produza essa feição, de tantas dificuldades, já foram motivo para muitos estudos e observações, mas o importante a destacar é que as ideias de Lacan obedecem à lógica de uma personalidade marcante e incansável na construção de questões complexas e em busca de suas invenções.

Nascido em 1901 numa família burguesa de tradição católica, na Cidade das Luzes, Jacques-Marie Émile Lacan cursará Medicina e, depois de especializar-se em Psiquiatria, defenderá uma tese sobre a paranoia no contexto do movimento surrealista, o qual buscava o entendimento da loucura como expressão humana sujeita a uma estética, que ganhava cada vez mais adeptos na literatura e nas artes plásticas.

O cenário dos primórdios das construções lacanianas obedece à exigência das reconstruções do pós-guerra e, especialmente no que concerne à Psicanálise, assume a imposição da reconquista da letra de Freud, então devorado pelo ideal americano da psicologia adaptativa, que toma a forma da Psicologia do Eu.

Atravessado pelo estudo de Hegel ministrado por Kojève, e dialogando com categorias heideggerianas que retomam Heráclito, Lacan articula uma teoria do sujeito inconsciente, conectando o cogito cartesiano com o inconsciente freudiano a partir de uma rede conceitual edificadora do campo epistemológico da Psicanálise, no umbral da Filosofia. Dois mil e quinhentos anos de estudos sobre a consciência serão visitados por Lacan, atentamente, na busca das operações que produzem “o fenômeno do espírito humano”.

Certamente uma empreitada como esta exigiu uma erudição ímpar e a clareza do lugar da linguagem no humano, para o que Lacan contou com a linguística estrutural de Ferdinand de Saussure e com os ensinamentos de Lévi-Strauss sobre as redes simbólicas constitutivas da cultura e do parentesco, depreendendo a máxima: “O inconsciente é estruturado como uma linguagem”, e mais tarde com a matemática e a topologia na busca de instrumentos para a articulação da estrutura diante de sua invenção maior, a saber, o Real.

Se procurarmos os nomes dos grandes pensadores do século XX, indubitavelmente encontraremos com destaque o de Jacques Lacan e, guiados pelo que se vem revelando cada vez mais patente, podemos dar a ele a atribuição da criação dos elementos mais precisos enquanto paradigma das questões sobre o humano, na entrada deste século.

Freud marca a passagem do século XIX para o XX, revelando a lógica do inconsciente no humano. Lacan dará sentido a esta revelação; dirá que Freud “abriu a possibilidade de conhecermos coisas totalmente novas que não se havia imaginado antes dele, problemas… do inconsciente à importância da sexualidade, do acesso ao simbólico à sujeição às leis da linguagem” (entrevista à Revista Italiana, em 1974). Na passagem do século XX para o XXI recorremos à sua lógica, referida à lógica moderna para percorrer esses “problemas”…

Como todo pensamento que efetiva uma insurreição, o pensamento de Lacan angariou muitos opositores, antipatizantes e apaixonados; sem dúvida, contou com inúmeros ouvidos atentos que, apesar da estranheza, não sucumbiram às dificuldades do estilo do “Gôngora da Psicanálise”, como foi apelidado nosso personagem.

A Jacques Lacan os analistas devem os elementos para a articulação da formação do analista, que só com ele, pela via de sua obra, pôde deslocar-se, de uma perspectiva imaginária aos moldes do fenômeno de grupo apontado por Freud, para uma dimensão onde opera a radicalidade da singularidade, num percurso onde “se realizam” princípios da ordem das operações que se cumprem numa análise. Sublinhando o lugar da psicanálise na tomada de posição epistemológica na pólis, entre os discursos do tempo vigente, ele afirma que “o inconsciente é a política” e ratifica que a ética da psicanálise é a ética do desejo, implicando cada analista no processo de transmissão da psicanálise.

Lacan foi um homem controvertido, que levou adiante questões fundamentais em sua vida. Tal como Freud, era obstinado pelo sucesso e buscava, como Antígona, personagem por ele tão estimada, a imortalidade.

Apaixonado pelo cinema e pela arte em geral, buscou, neste terreno, inúmeras metáforas para suas afirmações, apontando no objeto de arte a mais elevada expressão do vazio constitutivo do humano, e, absolutamente ciente do triunfo da “ilusão” da religião, enquanto dimensão sublimatória diante do real no humano, dedicou parte considerável de sua obra à concepção dessa operação, assim como, referido à Freud e à ciência que produziu suas ideias, enfrentou os limites da ciência moderna, com suas próprias ilusões, obstinadamente, criando um caminho de articulação da psicanálise com o científico que vai além das possibilidades encontradas até o século XX. Isso revela sua relação com os termos universais, com as três grandes vias de sublimação na civilização e compõe uma textura sofisticada e fascinante ao seu ensino e às categorias por ele desbravadas.

Seu legado é um instrumento precioso para pensarmos a dimensão do gozo do Outro na trama política que nos convoca à resistência diante do pior no simbólico frente ao real. Sendo assim, a falcatrua de uma perspectiva que aterra as inscrições experimentadas no acordo que sustenta o laço social deve ser barrada por uma política que permita a livre transmissão e ressignificação dos saberes na cultura. Esta é a luta perene que Lacan magistralmente cuidou de demonstrar e sublinhar, a luta pelo maior recurso: o deslocamento do simbólico, sempre derrisório.

            Pelo lugar que Lacan ocupa na topologia da construção do pensamento humano, por seu legado com o qual nos ocupamos e nos comprometemos em nossa formação, com admiração o parabenizamos.

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