06/05/2021 – Homenagem aos 165 anos de Sigmund Freud

Mestre, permita-nos uma catarse a seu precioso ouvido. Um pequeno inventário do seu legado no ano de 2021.

Hoje contamos mais um ano da sua chegada a este mundo perenemente confuso. Cento e sessenta e cinco anos foram tempo suficiente para que os ecos de seu pensamento iluminado se consolidassem em nossa cultura, socorrendo-nos na perplexidade com as agruras e truculências do humano. Suas ideias, ainda que sujeitas a ataques de toda ordem por parte dos que fazem o jogo mesquinho com a dívida simbólica diante dos monumentos da construção do conhecimento e da sabedoria humana, belezas que nós, analistas, aprendemos a cultivar com você, são, a despeito dos equívocos propagados pelo sintoma de nossa contemporaneidade, a vanguarda dos instrumentos para a batalha complexa em vistas a inventar, na contracorrente das forças da destruição.

Sua presença no percurso histórico da humanidade produziu uma sacada inarredável: não caminhamos para um bem universal. Somos axiomaticamente divididos entre um inefável que age em nós com absoluta autonomia, buscando incessantemente a coisa que nunca existiu e uma possibilidade de ordenações simbólicas insuficientes para o bom entendimento entre os humanos. Isso resulta em incontáveis mundos que estão fadados a não estabelecerem relação e a padecerem dos ódios resultantes da não-correspondência produzida pela falta. Você experimentou na própria pele a fúria desse fluxo incognoscível, de tenebrosa agressividade, em que uns se autorizam, atolados nas falcatruas do simbólico, a destituírem as belezas de nossas diferenças que, em contraponto, arejam tudo isso com fantásticas surpresas. Impiedosamente uns, a maior parte, são triturados em suas dignidades pelo gozo do acúmulo dos bens que, infelizmente, detém a força para promover o terror e a imobilidade, como você bem nos mostrou. Tudo isso se erige com o subsídio da “moral civilizada”, à qual recorrem boas e más intenções a serviço do moralismo ofensivo e retrógrado. Isso me faz lembrar a sua refinada ironia no comentário a seu amigo sobre a incineração dos seus livros: “Veja que progresso da civilização; em outros tempos me haveriam levado à fogueira, hoje se contentam em queimar meus livros”. Que parada, essa nossa condição humana!

Todavia, com você aprendemos a ir além da vitimização e fazer valer o melhor, a reinventar sempre, a desafiar a falta…

A clínica da psicanálise caminha, mesmo que alguns bradem de maneira ignóbil e patética o contrário – você sabe, são as novas caras do horror que suas ideias causaram desde aquele dia em que fez sua primeira conferência sobre a sexualidade na infância. Infelizmente, a cegueira da tragédia sofocliana impera neste tempo, entorpecendo crianças e destituindo suas subjetividades em condicionamentos alienantes que resultam em suicídios frequentes de jovens adolescentes. A propósito, seus achados sobre a lógica e as variantes da sexualidade humana, tão bem estabelecidos na singela carta de 1935 em resposta a uma mãe inquieta com seu filho, produziram ferramentas importantíssimas para a abertura e reordenações da afirmação da homossexualidade no laço social. Contudo, a batalha para a psicanálise é grande, como sabemos desde que você nos mostrou o lugar dela na história do conhecimento e da cultura, situada por sua atipia e atopia quanto à lógica da razão, da verdade, da adequação e da normatividade. Ela é subversiva, como nos lembra seu maior leitor até nossos dias.

Com tantas diferenças produzidas no decorrer destes 165 anos, temos, concomitantemente, o eterno retorno do mesmo, como você bem sabe. Este paradoxo nos confere a reedição inesperada de mazelas vividas entre dois séculos, entre elas duas guerras mundiais, as quais, por conta de seus horrores, produziram um impacto histórico enorme, supostamente capaz de instaurar uma trégua, cautela quanto aos maus tratos entre humanos. Quisemos pensar ter aprendido algumas lições, estar mais instrumentados. No entanto, constatamos a distância da possibilidade de um processo civilizatório livre de violência. O mundo está cheio de guerras, de tormentos, de atrocidades. E os tempos mais recentes só têm feito patentear o horror com os modos, feitos política governamental, de se conduzir nosso país.

Imagine queestamos há um ano em meio a uma pandemia, como diria Lacan, “realmente” assustadora, desafio sinistro, bem conhecido por você que perdeu uma filha em situação similar. Pois bem, nesse novo tempo, no qual os deslocamentos e contatos humanos a toda distância se tornaram intensos, algo que se costumou chamar de globalização, e que certamente mereceria outra carta e muita conversa com historiadores e antropólogos, o vírus nos surpreendeu gerando uma pandemia jamais vista na humanidade pelo raio radical que definiu. O mundo inteiro está doente. Mas algo igualmente surpreendente se passou: pudemos experimentar as belezas dos inventos da humanidade. Contamos na tragédia com o respaldo impressionante da ciência, que você tanto prezava.Basta dizer que nossos cientistas em menos de um ano conseguiram produzir uma vacina para o vírus mortífero. O mundo se agitou, travou, ficou perplexo diante das exigências do distanciamento e, é claro, ainda não é possível dimensionar as consequências discursivas que se depreenderão de tamanho acontecimento.

Uma perturbação a mais é que aqui em nosso país nos deparamos com uma política negacionista exercida por um movimento execrável, na contramão de tanto que suas ideias condensaram dos saberes produzidos pela humanidade. Saiba que também por aqui vivemos um genocídio, o que nos faz pensar em sua carta a Einstein sobre os imperativos destrutivos, aquele seu comentário: “de nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens”.

A depreensão que Lacan fez de sua obra, estabelecendo que “o inconsciente é a política”, ajudou na formulação de nossa implicação na formação do analista, que exige antes de tudo o trabalho com o que você nos legou: uma interpretação do fato humano.
Neste tempo, temos uma novidade que faz com que as velocidades sejam vertiginosas. Sabemos em tempo real o que acontece em qualquer lugar do mundo. Isto é fantástico e escancara as grandes dimensões do ódio que você nos ensinou no seu Moisés
Pois bem, os ouriços estão por aqui, como sempre… E, seguindo suas recomendações, nos ocupamos deles.

Muitas vezes, como não podia deixar de ser, desanimamos; contudo, basta visitar seu consultório – hoje em exposição num belíssimo museu em Londres, na casa onde viveu as tristezas e apreensões daquele terrível fenômeno, sintetizado na figura de um monstro que, não fora você,nos deixaria pasmosao nos darmos conta de que dá as caras novamente em muitos lugares do mundo, inclusive em nosso país.Um nó na garganta dá sinal de nossa comoção diante de cada objeto que hoje o representa, dentre os que, na letra, o mantêm vivíssimo entre nós. Damo-nos conta do valor da vida em suas tensões, do incrível alento propagado pela arte e pelas belas criações humanas.

É do Brasil que lhe escrevemos, do nordeste do Brasil, onde de maneira particular estamos sofrendo a insanidade de um governo de extrema-direita a desmontar todo o aparato do Estado comprometido com a vida de seu povo pobre. O lema é a economia liberal e o sinistro apetite da entidade “o mercado”. Para seu conhecimento, estamos há cinco anos vivendo as consequências do impeachment, sem nenhum respaldo constitucional, de uma presidenta eleita legitimamente, que representou as complexas dificuldades de nossa gente. O movimento serviu aos setores que comandam o país desde nossa necrófila colonização.

Como você demonstrou em Totem e tabu, há uma potência imensa e criativa nas culturas, repleta de singularidades. E por aqui isto é estrondoso. Contudo, aquele mesmo país que destituiu seus achados com o disparate da psicologia do ego decidiu retomar suas tentativas de explorar nossas riquezas. O pior, dessa vez, é que encontrou em nossas urnas apoio suficiente para eleger um inominável, vergonha internacional, que ataca negros, mulheres e gays, defende a ditadura e a tortura, traindo todas as conquistas feitas quanto ao cumprimento dos acordos humanitários, inscritos pelo consenso dos pactos simbólicos. Voltamos décadas atrás nas conquistas feitas, e aqueles que buscam na instrução entendimento para as operações da política encontram-se desolados.E as coisas só ficaram agravadas no último ano, com a convergência nefasta entre vírus e verme convertendo vários recantos do país em cemitérios infindáveis, com o morticínio esparramado especialmente no seio da população empobrecida, e trazendo de volta a fome ao cotidiano de milhões de pessoas.

Para que tudo isso se viabilizasse, mais uma vez foi preciso construir o inimigo: um líder popular, a despeito de quefinalmente ele seja reconhecido inocente e então libertado das garras de verdadeiras fraudes judiciais; sim, ele que, certamente sem ter lido Psicologia das massas, sabiamente recomendava que suas ideias se refizessem em cada um na batalha de fazer valer o trabalho, legítima fonte das riquezas do mundo.

Hoje, dia seis de maio, data que inscreveu sua presença no mundo e de que sempre recordamos, queremos dar-lhe os parabéns por tanto que trouxe aos nossos mundos, circunscritos pelo mal-estar na civilização que nos desafia a cada dia, pela grande revelação do inconsciente e pelas ferramentas que nos deixou para tratar do futuro de nossas ilusões.

Maceió, 06 de maio de 2021

Texto escrito por Taciana de Melo Mafra Vasconcellos e Pedro Lima Vasconcellos.

Subscrevem o texto:
Anamélia Macêdo
Arary Galvão
Emily Carvalho
Jeanine Toledo
Juliana Aragão
Gesiane Gomes
Maria Carolina Marques
Lara Mafra
Mariana Marza
Marília Mafra
Marina Teixeira
Marlene Ferreira
Mário Pessoa
Paula Quintella
Vânia Fialho

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