Psicanálise é Ciência
A história do saber científico é verificada em todo o processo da humanização, nos passos dados antes mesmo da formalização da escrita, embora a ciência, tal como a definimos hoje, esteja situada historicamente pela proposição das ideias de René Descartes, na primeira metade do século XVII. Efetivamente, a experiência de friccionar duas pedras, observar faíscas e dar a isso consequências – a invenção do fogo – é, certamente, uma experiência primordial da ordem do pensamento científico, de valor inestimável. Contudo, o tempo de articulação da experiência depende das depreensões que viabilizem o caminho da ordenação deste conhecimento e de sua transmissão, o que exige tempo, no qual transita a posição subjetiva de cada humano envolvido com o novo conhecimento. Da pedra lascada, adiante, muito se inscreveu na coleção de saberes transmitidos em inúmeras gerações situadas no compasso da produção simbólica. Na Antiguidade Clássica, estes conhecimentos passaram a ser formalizados por aqueles que conhecemos como “filósofos gregos”, os quais, sublinhando o que chamaram de razão, implementaram as observações da natureza, da existência do homem e do universo, em uma posição na direção da verdade, distinta da construção erigida em mitos.
A propriedade do conhecimento científico, desde seus primórdios, é a de enfrentar o desconhecimento, os riscos e os desafios da humanidade em cada tempo de suas ordenações sociais, pela via de elaborações intelectuais, buscando uma verdade que, no processo da experiência, será verificada cuidadosamente. Assim será possível validar a proposição, advertido do limite quanto ao que dela é possível acessar e articular contingencialmente. O conjunto destas invenções compõe encadeamentos marcados por continuidades e rupturas na direção da ampliação do conhecimento e de novos recursos coletivos, a serem transmitidos para as próximas gerações, como feixes fundamentais que instrumentarão a busca de soluções quando dos futuros limites e impasses.
Em mais um passo, analisando a grande massa de ideias inscritas no trilhamento das gerações humanas, Descartes encontra discordâncias quanto à consistência dos tantos feixes de invenções e pretende resolver o problema produzindo um método que define a busca e o encontro com o saber científico, quando uma investigação erige uma verdade diante de evidências. Para tanto, seria fundamental a demarcação do objeto investigado, sua exaustiva análise, e a enumeração do resultado em termos de uma lógica que apresente uma escritura de redução conclusiva quanto a ele. Este caminho busca que haja segurança coletiva quanto à resposta apresentada, a qual será sempre condutora de desdobramentos no porvir. Assim sendo, um novo saber dará suporte às demais invenções com as quais se contará doravante, tal como a descoberta de Copérnico que colocará em marcha as de Galileu, Kepler, Newton, Einstein e todos os que virão mais além, em um movimento perene. Desta forma, o circuito de um amplo fluxo de relações deflagradoras de consequências imprevisíveis será formalizado para a organização de soluções coletivas propulsoras de novas ordenações no laço social.
A propriedade do pensamento científico cartesiano é a de buscar uma correspondência com a realidade, com o que existe fora do pesquisador; o que, paradoxalmente, é decisivo para os avatares da investigação. A consonância com o mundo real é, nesta perspectiva, aquilo que atesta a ordem da verdade. Portanto, será esta a finalidade do trabalho científico: a verdade e a produção
de saber, indo sempre além, quanto ao perene desconhecimento, aos riscos e aos desafios que operam na insuficiência humana. Sendo assim, no circuito da ciência estaremos, inexoravelmente, diante de uma experiência capaz de verificar a pertinência de um novo saber, capaz de ampliar o conhecimento e os recursos coletivos a serem transmitidos para as próximas gerações, como achados contingentes que serão suporte para futuros impasses.
Esta verdade caracteriza-se por sua relação com a racionalidade de uma ideia acessada pelo domínio da consciência. Ela é radicalmente distinta daquela que busca o apaziguamento das inquietações nos limites dos desafios humanos, produzida pelos sentidos contundentes que se erigem no construto do dogma religioso. Também difere das diversas visões de mundo da filosofia, a qual abrigou muito do pensamento científico e seus métodos até o corte cartesiano, o qual a redefine como aposta em uma solução idealizada de respostas universais para problemas coesos resolvidos sem hiâncias. E, resguardando uma maior afinidade, difere da arte que, de maneira ímpar, prescinde de recursos discursivos para transmitir esteticamente a dimensão ética da impossibilidade. Descartes, em seu tempo, entende que todas as questões que envolvem o raciocínio humano estão sujeitas à diversidade irredutível de modos e caminhos muito distintos de compreender e apreender, o que estabelece tensões insolúveis. Portanto, propõe que o que conduz a estranheza dos/nos pensamentos não pode ser objeto do novo modo de organizar o pensamento: a ciência moderna. Separou as coisas pensantes, irredutíveis a um único sentido, das coisas verificáveis por um cálculo racional que pudesse dirimir a dúvida quanto à resposta a uma questão observada na diversidade.
Este passo coloca em marcha um caminho verificadamente profícuo, de onde decorre o mais veloz e volumoso encadeamento de invenções na história humana, estabelecidas nos trezentos anos seguintes, mudando sobremaneira as sociedades. Mas justamente a condição para a instalação deste campo deixa um problema colateral de vulto, que desafia a própria ciência: como dar conta da subjetividade humana, seus desencontros e seu patente sofrimento íntimo? Está posto o maior desafio na/da ciência moderna: produzir conhecimento sobre o estranho humano, radicalmente singular e coletivo.
No início do século XIX Auguste Comte, premido pela exigência de pensar os problemas sociais dos humanos, fará uma nova proposta, devastadora. Ele força o assentamento dessas questões no campo científico, desconsiderando que isso exigia modificar a definição do objeto e, consequentemente, os recursos do método científico – o que ainda não estava posto – para que fosse possível intervir sobre a subjetividade, motor do laço social. O que ele apresentou, no que de alguma forma seria seguido por Durkheim, foi uma retórica reducionista do complexo humano, para a qual ele relacionou o significante “física”, próprio à ciência cartesiana, ao social: “física social”, para forjar a senha de entrada das questões até então desalojadas do método científico. O resultado que daí se desdobrou foi manter o sujeito fora do campo da ciência – o que, a essa altura, urgia inserção – reduzindo o humano ao viés da função natural e do comportamento, com base em uma metodologia apoiada num suposto evolucionismo e em uma classificação arbitrária do mesmo comportamento, calcada em precária observação de laboratórios – executada pela psicologia – que passa a estabelecer parâmetros de adaptação à suposta normatividade.
O problema isolado por Descartes era o da imprevisibilidade e da estranheza humanas; ele não arriscou solução em sua época. Contudo, o que vem ao campo da ciência com o forçamento comteano é um circuito de pesquisas sujeitas à servidão a um dispositivo até então incompatível com a tratativa da referida estranheza.
O que é, afinal, o humano para que possa haver um leque de disciplinas que o tomaram como objeto? Impossível definir. Razão pela qual Descartes havia tomado a decisão de apartar o estranho sujeito. A partir de meados do século XIX, o advento da sociologia, da psicologia e da antropologia dará os sinais, junto com o problema da psiquiatria – da mesma ordem, que já se havia pronunciado dentro da medicina – e provocará uma revisão do princípio de sustentação do campo da ciência. Tratemos, portanto, de distinguir ciência moderna de positivismo. Ela delimita o campo, enquanto este se desvia do humano a pretexto de abarcá-lo.
O esgotamento da definição do objeto da ciência como res extensa, coisa verificável, e o reducionismo ao qual o positivismo comteano submeteu o humano produzem sintomas significativos na passagem do século XIX para o XX. É claríssimo que o poder conquistado pela ciência moderna é acionado, ao mesmo tempo que abarcado, nas convulsões e demandas colocadas nos vários estágios da história do capitalismo.
O corte seguinte ao de Descartes, que efetivamente se impõe para a ampliação da definição de objeto no campo científico, é o de Sigmund Freud. O primeiro a entender e levar às últimas consequências o problema instalado. Cientista aguerrido da Escola de Helmontz, biólogo darwiniano e grande neurologista envolvido nos primórdios das pesquisas que levarão às sinapses, Freud afirma a impossibilidade de que o pensamento humano seja da ordem do biológico, definido naturalmente.
Pela primeira vez, numa tomada absolutamente inédita, Freud afirmará que o humano é uma perversão do natural, constituído pela falta do objeto instintivo que conduz à estrutura de um corpo constituído de linguagem, numa trama de ficção que destitui uma realidade comum. Esta assertiva erige o monumental sistema inconsciente que redimensiona toda a lógica da razão, da consciência e do conhecimento humano. O humano fala. E a fala não é uma operação biológica detectável na estrutura cerebral. Essa é a primeira tomada de posição que leva Freud a romper com a medicina e fundar o novo campo. Tal posição faz um corte que exige a recondução da perspectiva cartesiana que apartara alma, cogito, de corpo, coisas verificáveis. Com Freud, o que havia sido isolado por Descartes como inconcebível cientificamente retorna ao eixo das construções epistemológicas, sustentadas por seu método clínico, a associação livre, o qual surge de sua obstinada relação com o científico, definido peremptoriamente por ele, como efeito das descobertas estabelecidas no trilho da ciência. A verdade e o saber, com Freud, sofrem, portanto, uma torção radical que estabelece a singularidade e a incomensurabilidade da realidade, o que incide sobre o sujeito da ciência e sobre o critério de evidência do método proposto por Descartes.
O pensamento, pivô do discurso do método, é condição da racionalização sobre a coisa verificável: o sujeito pensante, o sujeito da ciência, é o mesmo que deveria ser isolado da lógica da investigação verificável. Isto soergue as questões epistemológicas que incidem na crítica sobre
a solução do método científico cartesiano: a de que cada invento científico tem uma relação radical com o sistema de pensamento de seu inventor. O que significa dizer que, epistemologicamente falando, o trabalho científico implica a subjetividade, de maneira patente, no que diz respeito ao que envolve as estruturas de sentido determinadas pelo objeto. Efetivamente, Freud revela que não há um mundo, e que o mal-estar na civilização é um enfrentamento da estrutura de um falante. A realidade, o fato, base de verificação da verdade, serão tantos quantos sejam os que componham o número de humanos aí envolvidos. Desta forma, as revelações estabelecidas por Freud, a partir da clínica, já não permitem situar a verdade e o saber como passíveis de verificação exata; há um giro da lógica que define o objeto da ciência, em mais um corte consequente ao próprio efeito do saber científico, no curso da história do conhecimento, da ciência.
A assunção de Freud é concomitante à grande movimentação no campo da matemática, a qual, com o número infinitesimal de Cantor, encontra a contundência do limite da escritura do simbólico, o impossível. É preciso sublinhar, portanto, que a descoberta do inconsciente freudiano é um impulsor deste deslizamento do conceito do objeto da ciência moderna, no que diz respeito à restituição do sujeito e à retificação da minimização negociada pelas ciências “humanas”, justamente com o escopo de serem reconhecidas na cientificidade que pleiteavam.
As consequências desse giro incidem sobre o caminho da formação do analista, que não se poderá produzir do modo como ocorria com as ciências de até então, na universidade. Para que advenha um analista, o conhecimento do mestre é impróprio. A formação do analista advém de uma travessia subjetiva só possível na aplicação do próprio método do campo. Sem que se aproprie do saber do mestre, servindo-se dele na radical diferença, sem que advenha a própria versão do nada, e da alienação que constitui o sujeito do inconsciente na linguagem, não há analista. É pela via do impossível revelado no lapso e da ignorância que sabe do equívoco, em transferência, e não das certezas verificáveis, imputadas pelo conhecimento do mestre, que advém um analista. Portanto, com Freud a universidade se mostra imprópria para a formação do analista.
Freud jamais hesitou quanto à topologia epistemológica da psicanálise: uma ciência que, com sua invenção, exige a modificação da significação do objeto que nela desliza. Seu invento impacta as certezas da cognição e altera a prospecção do conhecimento no século XX. O trabalho epistemológico irá enfrentar o declínio da operação cartesiana, que reflete seus sinais na propagação das pseudociências, patrocinadas pelo mestre capitalista. Portanto, o corte freudiano implementa o movimento da ressignificação, quanto à definição do objeto da ciência, que terá no campo da psicanálise sua mais decisiva articulação, com os conceitos de Real e objeto a, erigidos por Lacan a partir do pensamento de Freud.
Foi Jacques Lacan, certamente o maior epistemólogo do século XX, justamente por sua vastíssima erudição, seivada de uma crítica assídua à história do conhecimento, que, envolvido com a ponta de lança da ciência de seu tempo, sustentou a mais relevante leitura da obra de
Freud, com empenho incansável na direção da obstinada busca de suas consequências. Coube a ele promover a articulação rigorosa da escritura científica que, no além da ciência moderna, dá suporte ao real impossível de se escrever na constituição do falante. Apresentando a escritura lógica em torno do objeto da psicanálise, a saber, o objeto a, por ele concebido, e uma clínica do sinthoma, que redimensiona a estrutura do sujeito, ele retorna à lógica do mal-estar na civilização e à política regida pela incidência do gozo singular na vertigem da submissão e resistência, que colidem na perene reinvenção do coletivo. Coube ainda a Lacan a elaboração do dispositivo da formação do analista: a Escola. Sua proposição retoma a relação perene da busca do saber, o qual se sabe fundamentalmente insuficiente, para a articulação do impossível. Referido ao mestre, buscado na universitas litterarum, o efeito do desejo do analista implica-se no para além da mestria, com o entusiasmo da decidida autoria. Desta forma se encaminha a transmissão da psicanálise, no desafio do enfrentamento criativo diante do real em jogo no coletivo; este articulado um a um, na Escola, que dará o testemunho de um campo radicalmente científico, em vital interlocução, de estrutura política, com os demais campos do saber e da arte de seu tempo.