“as mais complicadas realizações do pensamento
são possíveis sem a assistência da consciência”. (Freud)
“É que a uma nova verdade não podemos contentar-nos de dar lugar,
porque é de assumir nosso lugar nela que se trata”. (Lacan)
A psicanálise se insere na cultura, fundando um campo. As razões para isso sustentam o construto da saga epistemológica que a define, e certamente precisam ser situadas para que fique clara a sua atopia em relação à formação universitária. Todas essas razões estão calcadas no reconhecimento da radical importância, do que se produziu em 2500 anos, desde os primórdios da filosofia grega, de construções sobre a razão e a consciência. Taissistemas de pensamento, em seus avatares, estabeleceram o que conhecemos como a ciência moderna e háaproximadamente um milênio vêm sendo transmitido nas universidades.
Foi pelos efeitos dessa produção, e no limite das questões por ela tratadas, que se erigiu, com o gênio de Freud, a articulação do inconsciente, a qual revira as coordenadas do acesso à verdade e ao que se costumou chamar de realidade. Com Freud estes parâmetros se deparam com novas perspectivas para pensar um além da razão e da consciência situadas até então. O inconsciente de Freud revela que a consciência, o pensamento e a realidade são constituídos à revelia da deliberação de uma verdade e de um bem comuns. Como se vê, este fundamento é impactante e exigiu rigor e tempo de elaboração, assim como de transmissão, considerando a estranheza que traz à tona, na medida em que redimensiona a lógica e a tradição das ideias com a novidade que coloca em cena na ciência e na cultura: “o humano não é senhor em sua própria casa”. O inconsciente tem como mola um impossível de se inscrever, de saber, de se deixar pegar pela razão e incide como transferência das inscrições coletivas de maneira radicalmente singular.
Contudo, é preciso sublinhar que a psicanálise se reconhece como herdeira do trilho epistemológico das ideias do chamado Ocidente, seguindo o encadeamentodas descobertas que daí advieram para as subversões que sua invenção exige. Jacques Lacan examina com afinco o corte que as ideias de Freud promovem na cultura e aponta em sua depreensão os princípios exigentes do novo campo que intervêm sobre o sujeito da ciência, numa clínica. Como próprio aos desafios de uma nova construção, o caminho da formação do analista se engrenou em tempos diversos articulando, com os erros e insuficiências, as saídas para o tempo sucessivo. Certamente a familiaridade com o modo de transmissão acadêmico insistiu nos primórdios dessa concatenação, fazendo com que o primeiro tempo de sua fundação, em 1910, revelasse, no só depois, seus equívocos. Tanto Freud como Lacan estavam certos de que era preciso definir a institucionalização dessa transmissão. No curso de um longo processo bastante exigente, que levou 54 anos para formular princípios e dispositivos que a sustente em seu tempo, constituiu-se um caminho radicalmente novo para a formação do analista, referido à clínica que opera, com oato de fundação da primeira Escola de psicanálise por Jacques Lacan, em 1964, que sublinha o tripé da formação freudiana criando uma estrutura de transmissão na qual o real em jogo encontra, num processo permanente,condições para uma produção responsável pelo lugar da psicanálise na cultura e pela articulação singular da formação de cada analista.
Sendo assim, a intervenção que funda a transmissão desse campo fora da universidade tem uma complexa e rigorosa história de mais de um século que nada tem a ver com uma notação de prestígio para a pertença, e sim com a impossibilidade de que os novos elementos trazidos ao mundo científico pela psicanálise pudessem se inscrever, sem mais, no trilho da ideias.
Uma coisa é que se tenha conhecimento para uma estrutura de questões subjetivas; outra muito diferente é que esse conhecimento se aplique à estranheza de si mesmo possibilitando uma intervenção clínica. Não basta dizer a alguém com angústia o que se entende epistemologicamente por tal fenômeno. É pelo efeito de uma longa e articulada experiência subjetiva que o analista produz seu ato, sua intervenção. Um analista é efeito de análise, por essa razão se autoriza de si mesmo, com a apropriação de seu estilo, o qual definirá por que caminho o conhecimento da doutrina da psicanálise, vastíssimo, vai se erigir em sua formação, decisivamente singular. Oconhecimento desta doutrina depende desse efeito e se transmite como produção de saber singular no trabalho da transferência (na análise) e na transferência de trabalho entre pares (na Escola). Com isso, a psicanálise contribui para uma revisão radical do próprio conceito de ciência,estabelecendo a impossibilidade de sua transmissão pela via do modelo acadêmico. É nas Escolas e instituições de psicanálise que um analista presta contas de seu ato àcomunidade analítica e à sociedade.
A formação do analista, portanto, é desbravada e enfrentada há 110 anos, desde a fundação da primeira sociedade de psicanálise, decidida por Freud em 1910 e implementada pela primeira geração de psicanalistas. Uma via significativa de respostas às questões que foram se impondo nesse percurso segue as indagações e proposições de Lacan que, num resgate da invenção de Freud, define e articula, a partir de seus princípiosfundamentais, a formação do analista.
Os desdobramentos no campo lacaniano também são diversos, todavia estabelecidos na lógica do reconhecimento da comunidade analítica, pela via de uma densa produção, que envolve a discussão sobre a institucionalização de maneira rigorosa e perene.
O que Freud trouxe ao mundo do conhecimento jamais havia sido articulado antes, a saber, oatravessamento do deslumbre da consciência para a consideração de uma singularidade do desejo, arredio à adequação ditada pela moral. Isso deve ser conferido pelos interessados nesse campo, com os estudos e a interlocução constante com os outros campos do saber, da arte e da política, escopo que coloca em marcha o entusiasmo para uma produção interminável.
A análise do analista, os estudos da doutrina freud-lacaniana e a supervisão com analistas reconhecidos por suas clínicas e produção na comunidade analítica são dispositivos que cumprem uma lógica articulada em seusvértices. Tal tripé deve ser afirmado em seus efeitos de analista diante da produção entre analistas; ele não garante um analista em seu cumprimento formal, num a priori.
A psicanálise sempre suscitou algum tumulto com sua posição fundamentalmente subversiva ao discurso contingente, sempre referida ao mais além da significação possível, da adequação e do senso comum; por essas razões incomoda e atrai simultaneamente. Freud mencionou esse fenômeno muitas vezes. Não sãonovidade ataques que tentam destituir a psicanálise; no entanto ela segue cada vez mais instrumentada pela via da produção e do esforço decidido e entusiasmado de muitos analistas inscritos nessa já longa história.
O interesse despertado pela psicanálise no campo definido pela ciência cartesiana expressou sua reciprocidade com um diálogo estabelecido em muitos cursos universitários, que estabeleceram disciplinas para discutir essa teoria. Freud viu esse movimento com bons olhos e também Lacan, que realizou longa parte de seus seminários dentro da universidade, discutindo com acadêmicos de diversos campos das “exatas” e das “humanidades”. Entretanto esse diálogo frutífero, que fez de muitos analistas pesquisadores da universidade e vice-versa, jamais se confundiu com os princípios da formação do analista. Portanto, o anúncio de um bacharelado em psicanálise, apresentado como meio para a formação de um analista, é uma falácia, e merece o repúdio que vem recebendo de toda a comunidade analítica definida nestes 110 anos de institucionalização para a transmissão da psicanálise. A desconfiança quanto às motivações que levam uma universidade a oferecer um curso à distância, que autorize em 4 anos pessoas a essa prática, é mais que justificada. Trata-se de um engodo que precisa ser denunciado e destituído, já que não pode cumprir o que vende inescrupulosamente.
Taciana Mafra Vasconcellos